E reclamava o esboço de escritor numa agonia
desfraldada
__ De angústia tenho bebido
De
haver-se a alma escancarada
Por
ausência de sentido
Ao ouvir tal desencanto, indignada a caneta
bradava:
__ Sou eu quem sangra a cada sílaba
Cada
palavra, cada som, cada tom
E
hei-me consumida.
És tu quem
chora?
Cada
lamento, cada desejo, cada sonho, cada protesto
E hei-me
transformada.
E o escritor de esboços, já em tom de desespero:
__ De não saber o que quero
Há
muito tenho fugido.
Pra ser sincero, caneta
Solidarizo-me
contigo
E eis que se ouve a voz da folha de caderno:
__ Sou em quem me deixo transfigurar passiva
Minha
mutação é decretada por eterno.
E o escritor esboçal:
__ Eterna é tua mutilação
Por mim
desencadeada
Esfacelam-te
minhas lágrimas, meu sangue salgado
Até o
tempo tem tuas folhas incendiado.
Mais uma vez a caneta bradante:
__ Chega de penúria!
Enquanto
te angustias, mordes-me a bunda!
E o escritor esboçante:
__ Tem razão.
Antes
que nos destrua, fugirei desta lamúria.
E, numa virada de pescoço imprevista, entra na
conversa a modelo da capa de revista:
__ Vem que te darei prazer.
Afogarei
tuas mágoas, extinguindo tua agonia
Vem que
te darei prazer e esquecimento.
E o esboçoso escritor:
__ É verdade que a carne é fraca
Quando o espírito é duro
Por
mais que nossos corpos se entendam, hoje nossas almas não se compreenderão.
E a modelo, sem desviar os olhos:
__ Beija-me, beija-me
E o escritor murmurante:
__ O que procuro não é o idílio do esquecimento
Mas, o sentido
completo: a rota, o rumo, a seta.
O
entendimento
O que
procuro não é a opulência,
Mas o
desejo incomunicável,
O
sublime, o cotidiano sagrado.
Neste momento, atravessa a mesa uma pequena
formiga com asas. Para, observa e nada diz.
E o escritor:
__ Formiga, teu silêncio lembrou-me a tristeza,
fonte de irrigação de meu coração cheio de dúvidas.
De súbito e bruscamente, manifestou-se a
inspiração:
__ Nego-me! Nego-me a colaborar com esta
insistência!
Nego-me
a recriar esta angústia.
Caneta, escritor, modelo, formiga, folha
permanecem calados, atônitos.
Algum tempo depois o escritor fita a inspiração
com ternura e, com um gesto carinhoso, diz:
__ A angústia por vezes se expressa de maneira
ambígua, mas dentro dela ainda há algo que aponta para a possibilidade de
libertação.
Jean Moreno, 1996
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