quarta-feira, 23 de setembro de 2015

És tu quem chora?




E reclamava o esboço de escritor numa agonia desfraldada
__ De angústia tenho bebido
     De haver-se a alma escancarada
     Por ausência de sentido

Ao ouvir tal desencanto, indignada a caneta bradava:
__ Sou eu quem sangra a cada sílaba
     Cada palavra, cada som, cada tom
     E hei-me consumida.
     És tu quem chora?
    Cada lamento, cada desejo, cada sonho, cada protesto
    E hei-me transformada.

E o escritor de esboços, já em tom de desespero:
__ De não saber o que quero
     Há muito tenho fugido.
     Pra ser sincero, caneta
     Solidarizo-me contigo

E eis que se ouve a voz da folha de caderno:
__ Sou em quem me deixo transfigurar passiva
     Minha mutação é decretada por eterno.

E o escritor esboçal:
__ Eterna é tua mutilação
    Por mim desencadeada
    Esfacelam-te minhas lágrimas, meu sangue salgado
    Até o tempo tem tuas folhas incendiado.

Mais uma vez a caneta bradante:
__ Chega de penúria!
     Enquanto te angustias, mordes-me a bunda!

E o escritor esboçante:
__ Tem razão.
     Antes que nos destrua, fugirei desta lamúria.

E, numa virada de pescoço imprevista, entra na conversa a modelo da capa de revista:
__ Vem que te darei prazer.
     Afogarei tuas mágoas, extinguindo tua agonia
     Vem que te darei prazer e esquecimento.

E o esboçoso escritor:
__ É verdade que a carne é fraca
     Quando o espírito é duro
     Por mais que nossos corpos se entendam, hoje nossas almas não se compreenderão.

E a modelo, sem desviar os olhos:
__ Beija-me, beija-me

E o escritor murmurante:
__ O que procuro não é o idílio do esquecimento
     Mas, o sentido completo: a rota, o rumo, a seta.
     O entendimento
     O que procuro não é a opulência,
     Mas o desejo incomunicável,
     O sublime, o cotidiano sagrado.

Neste momento, atravessa a mesa uma pequena formiga com asas. Para, observa e nada diz.
E o escritor:
__ Formiga, teu silêncio lembrou-me a tristeza, fonte de irrigação de meu coração cheio de dúvidas.

De súbito e bruscamente, manifestou-se a inspiração:
__ Nego-me! Nego-me a colaborar com esta insistência!
     Nego-me a recriar esta angústia.

Caneta, escritor, modelo, formiga, folha permanecem calados, atônitos.
Algum tempo depois o escritor fita a inspiração com ternura e, com um gesto carinhoso, diz:
__ A angústia por vezes se expressa de maneira ambígua, mas dentro dela ainda há algo que aponta para a possibilidade de libertação.


Jean Moreno, 1996

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